Era um menino de uns onze anos. Cabelos loiros. Olhos e espírito inquietos. Percorria os espaços de brincadeiras e jogos, naqueles finais dos anos 60, com desenvoltura e liberdade. Na rua, era um moleque como os outros. Em casa, era quase difícil: arrumava formas sempre novas de zombar das irmãs, lia em voz alta (em tom de deboche) as cartas que o pai, enamorado, escrevera para a mãe, se recusava a fazer tarefas e trabalhos escolares, fugia dos castigos...
Havia nesse menino, porém, uma ternura insuspeita: amava os animais. O quintal da pequena casa onde morava com seus pais e irmãs já recebera galinhas (e um galinheiro inteiro!), codornas, coelhos, patos, passarinhos, gato e cachorro. O menino rebelde era doce e suave no cuidado com os animais.
Um período do ano, em especial, o transformava: vésperas do Dia de São Benedito. Em homenagem ao santo, a Cavalaria de São Benedito desfilava por toda a cidade: um grande cortejo de cavalos e cavaleiros. Nos dias anteriores à festa, cavalos eram trazidos dos sítios e fazendas vizinhos e, amarrados nos postes e portões, eram lavados, escovados, cuidados, tratados até estarem prontos a compor o cortejo.
O menino vibrava: se oferecia para escovar os cavalos, recolhia água em baldes para dar-lhes de beber, auxiliava cavaleiros a posicionar arreios e rédeas... Por vezes, conseguia, com esses favores, a concessão de uma volta sobre os animais, tão queridos por ele.
Naquele ano, assim que a Cavalaria terminou de passar pela rua de sua casa, o menino tomou uma decisão: seria também um cavaleiro de São Benedito. Pergunta daqui, indaga dali, descobriu: precisaria de calça, camisa, sapato e quepe brancos. Uma taxa para receber a fita verde-amarela que usaria atravessada no peito – marca dos cavaleiros de São Benedito.
O menino pediu dinheiro ao pai que, por conta dos escassos recursos da família, ou por querer ensinar alguma coisa ao filho, negou.
Dias depois, ouviram-se no quintal barulhos ininterruptos de serra e martelo trabalhando a madeira. Algumas tardes de trabalho e lá estava: uma caixa de engraxate, das mais bonitas que já se viu. A imagem do menino engraxando sapatos foi um tanto constrangedora. A família era pobre, mas engraxar sapatos na rua era atividade para pessoas ainda mais pobres, quase miseráveis, aqueles que precisavam que seus filhos trabalhassem para ajudar em casa. Mas, o menino queria o dinheiro para ser cavaleiro... e foi engraxar sapatos. Durante um ano inteiro, lá foi ele... caixa nas costas, para a praça principal da cidade, em busca de sapatos para lustrar. Ao final do dia, depositava os trocados num envelope, que guardava sob as roupas na gaveta da cômoda.
Comprou a calça branca, o quepe e os tênis. A camisa, a mãe costurou, a partir do tecido que ele também comprou. Semanas antes da festa, pagou a taxa e recebeu as fitas de cavaleiro de São Benedito. O cavalo emprestou do tio... um belo e alto alazão, não muito manso.
No dia da cavalaria, não havia menino mais belo que ele... Empertigado sobre o cavalo, orgulhoso de ter conseguido, com seu próprio esforço, desfilar, uniformizado, por toda a cidade.
Nem vamos mencionar o cansaço que tomou conta dele depois da cavalaria e a promessa de que nunca mais seria um cavaleiro.
Vamos mencionar o quanto eu, sua irmã (então) caçula, admirei aquele menino com ares de homem, sobre o cavalo. Admirei-o e aprendi que todo trabalho é digno e que podemos ser o que sonhamos.
Eliana Maciel
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