domingo, 26 de junho de 2011

Navegação de Cabotagem

Do livro autobiográfico "Navegação de Cabotagem", de Jorge Amado, extraí este pequeno texto, que considero uma pérola. A diferença entre conhecer uma realidade e ser tocado por ela, verdadeiramente. Espero que apreciem.

"                                                             (Paris, 1948 - o número)

Paris, casa de Picasso, em torno à mesa de jantar, somos uns poucos na tentativa de convencê-lo a comparecer ao Congresso de Intelectuais pela Paz que se vai reunir em Wroclaw, na Polônia: Louis Aragon, Alexandre Korneichuk, Pierre Gamara, Emílio Sereni e a cineasta polonesa Wanda Jacubowska, cujo filme de estreia triunfa nas salas de cinema. Wanda está sentada ao lado do pintor.
Picasso, intransigente na recusa, não irá, peçam-lhe outra coisa, pode doar um quadro, se preciso. Comparecer, jamais, perda de tempo, tem mais o que fazer, deve pintar. Gastaram-se todos os argumentos, caíram todos no vazio, terminamos por desistir, o Congresso não contará com a estrela de Guernica. Queijos e vinhos, comenta-se o filme de Wanda Jacubowska.
Picasso demora o olhar no braço da cineasta, vê o número gravado, pergunta de que se trata.
- Meu número no campo de concentração onde estive durante a guerra.
Picasso passa de leve a ponta dos dedos no braço da moça de Varsóvia, olha para nós, dirige-se a Aragon:
- Eu vou, podem contar comigo.
Foi e fez discurso, esteve o tempo todo. Depois desenhou, para outros congressos, a paloma signo da paz. Tocara com os dedos a desgraça da guerra, o terror."

Jorge Amado


LIVRO NA CABECEIRA

Há alguns meses, recebi da minha irmã Rosana a indicação de um livro. O título é "A arte de ler"; a autora, Michéle Petit. Lida a resenha, não esperei nem um momento: comprei o livro pela internet. Dias depois, ele chegou pelo correio, foi devidamente desembrulhado e me aguarda, quieto, como gato à espreita, na mesa de cabeceira. Vez ou outra manuseio suas páginas, encantada com seu conteúdo. Atarefada, com outras tantas leituras para concluir, respiro fundo e o recoloco no lugar. Sei que se trata de obra marcante, que pede tempo com qualidade. Prevejo que serão palavras que unirão duas de minhas grandes paixões: a leitura e a educação. E deixo para depois, como quem guarda no canto do prato, para o fim, a iguaria mais saborosa.
Michéle Petit apresenta experiências de leitura "desenvolvidas em regiões afetadas por conflitos armados, de desequilíbrio social, migrações populacionais forçadas ou acentuada deterioração das condições de vida." Essas experiências auxiliam as pessoas que passam por estas situações a buscar novo significado para suas vidas. O exercício da leitura visto não somente como uma ferramenta pedagógia, mas como forma de construir sentidos, de auxiliar pessoas a resistir e superar as adversidades.

É nisso que acredito também. Em julho, nas férias, poderei, estou certa, mergulhar nessa leitura.

Eliana Maciel


domingo, 19 de junho de 2011

Raízes

Ontem foi aniversário da tia Anna. Oitenta e oito anos. Tia Anna é a matriarca da família. Já viu mortos seus pais, seu marido e sete dos oito irmãos. Trabalhou como professora e diretora de escola por muitos e muitos anos. Mesmo com a idade que tem, é uma mulher atuante, livre e atualizadíssima. Preserva a alegria, a lucidez e a suave compreensão por tudo que é, no homem, humano. Essa tia é uma delícia. É seu dom agregar pessoas. Ontem, uniu os familiares em seu sítio, o mesmo chão que abrigou a fazenda de minha avó Emma, desde que chegou da Áustria.
Apreciamos delicioso almoço ao lado da grande mangueira, fincada ali desde os tempos de minha avó. Ofereceu sombra, doou frutos, disponibilizou galhos firmes para os balanços de várias gerações. Ao lado da árvore, sentimo-nos todos ligados à mesma raiz frondosa das famílias Posch/Maciel. Tia Anna veio mesmo para unir. Como última filha do primeiro casamento de minha avó, nem conheceu o pai, Ricardo Posch, que faleceu quando ela era bebê. Minha avó casou-se então com meu avô, João Rodrigues Maciel, o João Mineiro. Meu avô foi o único pai que tia Anna conheceu. Cresceu sendo o elo entre os dois nomes: biologicamente Posch, foi criada como Maciel e assim seguiu toda a vida, buscando enlaçar os meio-irmãos. Como se não bastasse, sua filha caçula, Lúcia, se casou com um primo, Cláudio, um dos filhos do último filho de minha avó. A união deles exala amor verdadeiro. De novo, Posch e Maciel. Sem distinções.
Ao lado da mangueira e da graça da tia Anna, conversamos muito. Surpreendemo-nos com o olhar sempre doce do primo Celso, muitíssimo mais marcante que seus cabelos brancos. Falamos sobre a presença firme do primo Bertinho, admiramos a loirice da bisneta da Tia Anna, a voz mansa do primo Gilberto, como a voz do seu pai, o por todos querido tio Gustavo. Compartilhamos o riso fácil da prima Anna Cristina... Observamos fisionomias repetidas: a barba do primo Mauro como a do meu irmão Roberto. O andar da prima Cristina como o da minha irmã Luciana. Narizes parecidos, testas, cabelos, modos de falar... Ver o tio Leonel  gesticular é como ter novamente meu pai diante dos olhos... Trocamos atualizações sobre os fazeres da nova geração: a menina que concluiu o curso de Direito, a prima jovem que inicia um novo caminho e que traz nos olhos a esperança e a certeza de estar no caminho certo, os filhos que são aviadores, administradores, dentistas, vestibulandos, universitários. As gerações todas se sucedendo, como manga amadurecendo nos galhos. Recordamos as palavras certeiras da tia Olga, as piadas da tia Helena, os olhos azuis intensos do tio Geno. Não houve lágrimas (ao menos não de tristeza). Houve apertos de mãos, abraços, palavras carinhosas. As antigas mágoas ficando para trás, dando lugar ao diálogo, à presença e à familiaridade. A terra não mais motivo de disputas, mas solo firme onde exercemos nosso parentesco.
 Tia Anna – auxiliada pelo tempo - conseguiu.




domingo, 5 de junho de 2011

PASSE E CONTINUE!

Nas vésperas do Dia dos Namorados, um fragmento interessante do livro "Sem medo de vencer", do Roberto Shinyashiki. Em tempos em que "discutir a relação" parece ser a fórmula para o sucesso a dois, outra visão se impõe, no texto. Observem...

"Imagine que uma mulher esteja numa pequena cidade do Interior e pergunte ao matuto: 'Por favor, onde fica o sítio do Antônio Gomes?' O matuto começa a explicar: 'Olha, a senhora vai por essa rua, tem uma pracinha com uma igreja. A senhora passa e continua. Depois, vai ter uma ponte de madeira, toda pintada de verde. A senhora passa e continua. Depois vai ter uma mangueira bem grande, aliás, está na época de manga, tem cada manga gostosa!'  A mulher, já meio aflita, pergunta a ele: 'Então, o sítio é aí?' E ele: 'Não, senhora. A senhora passa e continua. Depois, vai ter uma porteira branca, bem grande, cheia de canteiros de flor em volta. A senhora passa e continua...' Após umas tantas indicações, o sítio do Antônio Gomes está realmente lá e você conseguiu atingir o objetivo.
O melhor é fazer com as ilusões do amor o mesmo que o matuto faz com as características do caminho: passe  e continue! Aparece a sensação de abandono só porque ela começou a estudar? Passe e continue! Surgiu um problema no relacionamento e você pensa que é o fim? Passe e continue! Ela foi visitar os pais e você acha que ela o está desvalorizando? Passe e continue!
Se o seu objetivo é amar, não se distraia! Se o objetivo é estar junto, esteja! Não há nada mais absurdo do que um casal perder seu precioso tempo, quando estão juntos, para... discutir se estão juntos ou não."


POEMA ANTIGO

Em suas mãos entrego o meu corpo –
Inerte e obediente – para a cura,
Das minhas feridas, a mais profunda.
Rolam na vidraça as gotas de chuva
Escorrem no meu rosto gotas de sal
Por sorte, a morte não quis me levar
Por sorte, há árvores que eu posso enxergar
E tantas folhas, tantas folhas
Apesar de ser outono
Apesar do sono em que meus lábios
Não tardaram a entrar
Na ponta dos seus dedos
Brilham as manchas escarlates da vida
Na ponta de seus dedos
O fio da sutura
A linha que costura
Meus olhos no seu olhar
Manso cavalheiro branco
Cicatriza a chaga
Que feriu de morte o coração de meu pai
Abre outra ferida – benigna –
Que eu não ouso querer fechar.