domingo, 29 de maio de 2011

Percurso

Há muitos anos, comprei um caderno espiral. O que conteria? Uma lista dos livros lidos por mim. Um a um, fui anotando livros e respectivos autores, linha a linha. Do meio para o fim, anoto frases, fragmentos, pensamentos que definem a obra e que me marcaram. Carrego-o comigo para onde vou. Creio que estejamos juntos há uns trinta (sim, trinta!) anos. Nas primeiras páginas, escrevo os endereços das casas em que vivi. A capa já esteve arruinada e eu corri para reencaderná-lo. As folhas estão amarelecidas, marcadas pelo tempo e pelo uso. Perdi de anotar livros que li ainda bem menina, acabei me esquecendo. Mas, agora, segundo conta meu - vamos chamar assim - Diário de Leitura, estou lendo o 668º livro. É muito? Pouco, para 47 anos de vida? Não sei. É muito mais do que minhas obrigações permitiriam e bem menos do que gostaria de ter lido.
 Percorrendo as linhas de livros, encontro meu passado: livros da época da faculdade, alguns emprestados por uma amiga que nem sei mais onde anda, os bestsellers, o festival de literatura brasileira, portuguesa, latinoamericana, os livros que precisei ler em momentos depressivos, os que li para entender melhor meus filhos... Nesta longa lista, vou-me enxergando como se houvesse um espelho costurado nas páginas deste simples caderno. Alegria maior foi, um dia, poder escrever em uma das linhas, o título do meu próprio livro. Salta aos olhos a diferença das letras, dos meus dezoito anos até agora. E o ecletismo dos livros. Há Hermann Hesse, Érico Veríssimo, J. M. Simmel, Clarice Lispector, José Saramago, Graciliano Ramos, Mia Couto, Og Mandino, Fernando Morais, Isabel Allende, Jorge Amado, Eça, Chico Buarque, Rosamunde Pilcher... e tantos, tantos outros.
Às vezes, assalta-me uma questão: o que farão deste caderno, quando eu morrer? Pra quem servirá este caderno? Pra que servirá este caderno? Um percurso de leitura é único, próprio, como a vida. Talvez faça um testamento (testamento não existe somente em novela?) para que seja sepultada com meu caderno. Um dia, seremos, eu e ele, das mesmas cinzas e do mesmo pó... leitor e leitura enfim unidos num mesmo fim.

Deste meu caderno, um belo fragmento de Paula, de Isabel Allende:

"Há um momento em que já não se pode deter a viagem iniciada, rolamos em direção a uma fronteira, passamos através de uma porta misteriosa  e amanhecemos do outro lado, em outra vida. A criança entra no mundo, e a mãe, em outro estado de consciência, nenhuma das duas volta  a ser a mesma. (...) O processo alegre de gerar um filho, a paciência na gestação, a força para trazê-lo à vida e o sentimento de profundo assombro em que isso culmina só podem ser comparados à criação de um livro. Os filhos, como os livros, são viagens ao nosso interior, nas quais o corpo, a mente e a alma inventam seus rumos, regressando ao próprio centro da vida."

domingo, 22 de maio de 2011

Pérolas

Das Mémorias de Adriano que estou lendo, bem devagar, saboreando...

"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros."

Marguerite Yourcenar

Bar, doce Lar

Quando eu era criança, havia um bar defronte à minha casa. Era um local lúgubre, sujo, frequentado por bêbados e indigentes. Vendiam somente caldo de cana e cachaça. Nenhuma pessoa “de família” entrava lá. Quando íamos comprar balas e doces no bar do seu Nenê, que ficava ao lado, sentíamos o cheiro saturado de madeira úmida saindo pelas portas duplas.
Lá pelos meus dez anos, surpreendi-me com a notícia: meu pai havia comprado aquele bar. Imaginei que fosse impossível mudar o lugar. Estava enganada. Em pouco tempo, o ambiente se transformou. Retiraram pilhas de entulho e lixo, lavaram, limparam... As mercadorias se diversificaram. Quase tudo de que uma família precisava estava ali: leite, pão, alguns produtos de mercearia, refrigerantes. Um dos balcões de madeira e vidro recebeu os doces para a meninada. Havia uma grande fatiadora de frios: mortadela, queijo prato, presunto de qualidade. Na estufa, sempre havia salgadinhos bem feitos: coxinhas, empadas, risoles. Minha mãe completava cozinhando salsichas no molho e ovos com casca colorida. Meu pai, todos os dias, ele mesmo, se encarregava de fazer um delicioso caldo de cana. Lembro-me do cuidado que tinha em raspar bem a cana para extrair toda a casca, em lavar o moinho e moer a cana, que era coada em pano branquinho, limpo por minha mãe. Resultado: garapa verde-claro, purinha, gelada na jarra e servida no copo, para freguês degustar. Nos fundos, havia uma grande mesa de bilhar. A pedido do meu pai, teci, em crochê, seis caçapas para aparar as bolas. Muitos rapazes jogavam bilhar, especialmente nos finais de semana, saboreando cerveja bem gelada.
Não havia almoço de domingo ou de feriado em que estivéssemos juntos... era sempre um almoçando e outro no bar, vendendo. Meu pai era rigoroso para atender sua freguesia.
O bar se tornou muito bem frequentado. As famílias podiam entrar. Nossa família também estava lá. O bar era a extensão da nossa casa: ali tomávamos o café da manhã, nos encontrávamos, conversávamos. Com este trabalho, das primeiras horas da manhã até quase meia-noite, meus pais nos proporcionaram nosso sustento e nossos estudos. Meu pai quis reformar nossa pequena casa. Mudamo-nos para a casa de nossa avó à espera do término da obra. E então ele, sem consultar ninguém, fez o impensável: colocou nossa casinha no chão. Nenhum tijolo sobrou. E construiu, em cinco anos de trabalho árduo, um prédio de três andares.
Sonhei noite passada com este bar antigo, que nos parecia feio e escuro, mas, que nos proporcionou, nas mãos de nosso pai e de nossa mãe, as oportunidades que temos agora. Trabalho digno, firme, constante. Como a presença deles em nossa vida.
Para concluir, empresto as palavras de Violeta Parra:
 Gracias a la vida que me ha dado tanto…”

Eliana Maciel

domingo, 15 de maio de 2011

Este sorriso que vocês veem aí ao lado é da minha tia. Seu nome? Maria Elena. Assim mesmo, com "E". Apelido: tia Lena. Ou, simplesmente, como o Léo (seu afilhado) a rebatizou: Tatá. Essa tia fará aniversário amanhã, dia 16 de maio. Pra ser sincera, não sei bem quantos anos. Para mim, ela é atemporal. E quase onipresente.
É irmã de minha mãe e a ajudou a cuidar de nós quando éramos pequenos. Sua dedicação continua, incansável, ano após ano. Dedica-se a tornar nossas vidas mais leves, seguras, alegres e tranquilas. É uma mulher alegre, simples, de presença suave e certa. É mais que tia, é amiga, irmã e mãe. Já chorei no seu ombro muitas vezes, já lhe pedi conselhos, já emprestei seu carro quando o meu estava no conserto, já rezamos juntas, já tomamos chuva equilibrando-nos sobre as pedras escorregadias de Paraty, já trocamos livros, receitas, lições de vida. Já rimos de piadas familiares e das gracinhas dos meus filhos. É meu braço direito - e, muitas vezes, o esquerdo também. Não há o que não faça por mim, meus filhos, meus irmãos. Um dia, quando eu era menina, uma conhecida, vendo-nos juntas, perguntou se eu era sua filha. Ela respondeu que eu era sobrinha. A mulher arrematou: "a quem Deus não deu filhos, o diabo deu sobrinhos." Rimos muito disso até hoje... Somente tenho certeza de que a quem Deus deu filhos, deu também, para ajudar, um anjo - o meu tem nome: Maria Elena, a Tatá.
Parabéns pelo seu dia... e que todos os seus sonhos se realizem.
Obrigada por tudo, sempre.

Eliana Maciel



Voltando para casa...

Era quarta-feira. Após minha terceira jornada de trabalho, voltei para casa, cansada, sonolenta, corpo dolorido... Um banho morno, rápido e, enquanto saboreava uma pequena xícara de chá, liguei a televisão. Rodei os canais todos, feliz por não encontrar nada que me agradasse. Afinal, a cama me esperava. Então, passei pela TV Cultura... Três pessoas comentavam um filme que seria exibido no minuto seguinte... O que diziam chamou-me a atenção... E o filme começou... O título sugestivo: "Voltando para casa" e o drama rápido, quase de ação, me prenderam. A xícara esquecida no braço do sofá, o sono adiado, o relógio calado. Não consegui me mover. Resultado: fui dormir depois da meia-noite e segurei o sono atrasado pelo resto da semana. Mas, valeu a pena... Belo filme... História sensível contada com agilidade, sem ser superficial. Imagens trabalhadas, atuações primorosas.
A história de um casal canadense com filhos gêmeos. Uma menina e um menino de oito anos. A esposa flagra o marido com outra mulher e quer se separar. Em meio à crise, descobrem que o menino tem câncer... e alergia à quimioterapia. A mãe descobre um curandeiro russo que pode ajudar o filho, e parte para lá, sem nem pensar muito. O encontro com o tal curandeiro é muito especial para ela, naquele momento.
O que acontece depois... é melhor que vocês assistam.

Título Original: Julie walking home
Lançamento: 2002 (Canadá, Alemanha, Polônia)
Direção: Agnieszka Holland
Atores: Miranda Otto, William Fichtner, Lothaire Bluteau, Ryan Smith.

domingo, 8 de maio de 2011

Mãe e Maternidade

Muito se diz sobre ser mãe. Entre o clássico “padecer no paraíso” e o trágico “desfiar fibra por fibra o coração”, a maternidade inspira pensamentos, poemas, músicas, frases feitas. Mãe de dois grandes meninos, nunca confiei nestes ditos que endeusam a mãe e revelam a maternidade como sublime, fora da realidade humana. A maternidade vista como suprema abnegação e doação. Isso é apenas uma parte da história. Mães são seres humanos e, embora quase nunca assumam, também perdem a linha, se irritam, erram, jogam, manipulam. As mães dedicadas, sensíveis e inteligentes se beneficiam da maternidade: fonte quase inesgotável de carinho e conforto, experiência humana ímpar no aprendizado da tolerância e da aceitação, imersão no universo dinâmico das novas gerações. Sim, ser mãe tem suas vantagens – e não são poucas.
Por isso, gosto muito de um texto que li há muito tempo, num livro intitulado – por incrível que pareça – A Madrasta, de Nancy Thayer. Pode não ser a mais bela definição de mãe, mas, por certo, para mim, é a mais verdadeira. Leiam:

(Meus filhos) “Eles me ligaram a alguma coisa profunda, ampla, selvagem e boa deste mundo. Ao nascerem, deram-me um conhecimento grande e chocante de minha capacidade para comer capim, para dançar nas árvores, para cair de telhados e dissolver-me em cintilantes moléculas de neve. Com a chegada deles, fiquei sabendo que estava agarrando a morte, rasgando-a pelo meio e espantando-a de vez com meu sangue quente e orgulhoso. (...) continuarei a atravessar esta vida com meus filhos como se estivesse atravessando um panelão de chocolate quente, pegajoso e doce. Esse chocolate me atrapalha, me detém, muitas vezes me irrita, mas continuo aqui, feliz, nesse mingau quente e grosso, lambendo o doce de meus dedos e braços e de minha barriga.”

Parabéns e abraços... de mãe para mães.

Eliana Maciel