Quem me conhece sabe: gosto dos meus cabelos crespos. Em uma família de mulheres com cabelos lisos,um pouco de minha identidade se formou pelas ondas dos meus bastos cabelos. “Uma das filhas da Dona Dina...” “Qual das três?” “A de cabelos crespos.” Passei quase incólume pelos longos tempos de escovas, chapinhas e outros processos de alisamento. Na formatura do meu filho mais velho, resolvi “arrumar” o cabelo. Muitos minutos de secador... e o espelho me revelou a estranha imagem: uma mistura de mim mesma e de minhas irmãs. Pedi à cabeleireira as ondas de volta. Ela atacou de “babyliss” e o resultado foi interessante. Foi o máximo que fiz.
Temo estragar os finos fios de minha cabeleira no calor excessivo dos secadores possantes. Temo que se habituem (inclusive eu mesma) à minha imagem de cabelos lisos. Temo me tornar dependente de cremes, escovas e pranchas. Temo tornar meus cabelos como muitos: alheios ao rosto, moldura barroca em pintura abstrata.
Mas, numa dessas noites em que se quer ficar deslumbrante para um encontro com o Amado, não houve jeito. O cabelo feito uma juba... Lavagem, condicionador, hidratação caseira e nada! Sem tempo e disposição para enfrentar a cadeira de um salão, lembrei-me da velha touca. Corri ao espelho... resgatei uma caixa de grampos e deixei meus dedos fazerem o serviço. Cabelo todo para um lado, o pente ajudando, os grampos segurando os fios. Mesmo sem ter feito touca antes, minhas mãos sabiam... Os movimentos dos dedos levaram-me para outro quarto, da casa antiga da minha avó... eu menina olhando minhas tias defronte ao espelho... os cabelos puxados, os grampos abertos nos dentes e inseridos paralelos, contornando a cabeça. Um lenço para cobrir tudo.
No meu quarto, segui o mesmo ritual e me surpreendi com a sabedoria das minhas femininas mãos. As mãos das mulheres sempre pentearam cabelos – os seus próprios e os de outras mulheres. Mães pentearam filhas, irmãs cortaram cabelos umas das outras (com resultados nem sempre satisfatórios), filhas ajeitaram cabelos de mães idosas, doentes, moribundas, mortas. Por detrás do gesto estético, sempre residiu a proximidade, o afago, o aconchego.
As mulheres hoje vão ao salão de beleza... Não se veem mais mulheres de lenços, bóbis, papelotes. Elas se arrumam entre paredes e se revelam ao mundo completamente prontas. Perfeitas. (Coisa que ninguém, na verdade, é.) As mulheres da minha infância, que saíam para as ruas no melhor estilo Dona Florinda (sim, eu já assisti ao Chaves), também eram amadas. Seus homens pareciam não se importar ao vê-las no processo de se tornarem mais belas. Hoje, fazemos toda questão de somente revelar aos homens o resultado, o produto... Será que pode residir aí um pouco da falta de paciência para conviver com os defeitos do outro? Não sei.
Depois da touca, gostei do que vi no espelho: meus cabelos assentados, sedosos e ainda cacheados. O Amado, devo dizer, nem notou a diferença. Disse que eu estava linda, como sempre. E, no final da noite, dedicamo-nos a coisa mais interessante e importante que pentear cabelos: dedicamo-nos a despenteá-los.