Sintetizar os contornos de uma obra literária em apenas uma linha é um desafio. Porém, me arrisco a dizer que o livro de contos de Eliana Maciel – “Menina dos Olhos” é um constante monólogo de evocações do masculino, uma espécie de “complexo de Édipo” às avessas, no qual o azul surge como uma espécie de metáfora àquele evocativo. Somente no último conto ocorre a celebração do feminino, agora em tom vermelho-sangue. Na realidade, a escritora, sondando pelas fendas de sua memória, retoma à sua infância captada pelos cinco sentidos, em especial pelo olhar. O mundo é uma grande tela, onde o azul, num primeiro momento, predomina. Ao contrário da vivência “cor-de-rosa” experimentada pela maioria das meninas, nos contos do livro “Menina dos Olhos” transparece a autora uma vivência única, de intenso realismo absorvido pelos olhos de alguém que vê e sente muito além daquilo que lhe é mostrado. Ela, ainda garota, descobre as maravilhas e as estranhezas do mundo, percebendo-o em suas cores, ruídos, texturas e aromas. É, sem dúvidas, uma narrativa permeada de sinestesias, como bem observou Marilena Araújo, mas de todas as sensações descritas, o olhar da menina se evidencia num contexto de objetos e sentimentos, onde o azul é a cor mais apreendida. Isso ocorre, por exemplo, logo no primeiro conto quando a pequena garota, na iminência de entrar no ônibus “apalpa o bolso da calça azul” (pág. 11). Tal circunstância seria irrelevante, se a referida cor não se repetisse em quase todos os demais contos do livro., com exceção de apenas quatro: “A fisgada”, “Tigela de sopa”, “O fim do mundo” e “Freio de mão”. Nesse sentido, o “portão azul” (pág. 17) é assim descrito no segundo conto, tornando-se título homônimo do próximo (pág. 21). O azul é também a cor do sofá (pág. 25), dos bibelôs (pág. 31), do vestido (pág. 39), do céu (pág. 43), da borracha (pág. 47), de outro céu (pág. 59) e dos olhos (pág. 43). Interessante é o predomínio do azul no conto “As flores do ladrilho”, no qual os olhos (pág. 63), o vitral (pág. 64) e o céu (pág. 65, pela terceira vez!) são todos azulados. Em “Grilos na madrugada”, por fim, as veias são azuis (pág. 68). Por intuição pura, arrisco aqui a tese de que o azul é uma metáfora, inconscientemente utilizada pela autora, para manifestação do masculino em sua obra. Não é sem razão que, assim como o azul, a figura do pai é outra constante nos contos de Eliana Maciel. A conhecida paixão da filha, quando ainda criança, pelo protótipo do masculino, mesmo que não tenha ela completa noção do que isso venha a ser. Fato é que a figura do pai é retomada diversas vezes no decorrer do livro. Coincidência ou não, esses dois elementos são encontrados não só no título do livro, mas na sua capa, na qual se denota clara preferência pela cor ou o tom azul. A menina só resolve então sua devoção ao pai (e por que não ao azul!), no último conto, quando narra, com o sugestivo título “Flores vermelhas”, a passagem de sua infância à vida adulta, o que é deflagrado com sua primeira menstruação. Aqui o azul desaparece, ou é dissolvido, num intenso vermelho-sangue que dá à menina cabeça e corpo de mulher. “É assim mesmo, está ficando moça.”, conclui com acerto a voz da tia reproduzida no texto. Nesse último conto o azul antes eleito para descrever objetos tipicamente masculinos (portão, céu, sofá, olho, vitral), agora é substituído pelo vermelho, “vermelho como a geléia das goiabas” (pág. 83), como é descrito o líquido quente que escorria pelas pernas da menina, agora mulher. O último conto é uma espécie de contemplação no espelho no qual a figura refletida é a menina, mas a figura que reflete é a mulher que acabou de aflorar. Como se, tomada desse sentimento novo, declarasse a mulher à menina em tom de despedida e autoafirmação: “Eis-me aqui, vermelha e mulher.” Como ocorre com os grandes pintores, o azul foi tão somente uma fase (etária e literária) da vida de Eliana Maciel, cujo vermelho foi descoberto no banheiro e revelado corajosamente numa página em branco. Isso cheira maturidade, goiabada e poesia.
Fábio Tibúrcio
Fábio Tibúrcio
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