Compartilho com vocês o texto Copacabana, de minha autoria. No aniversário de 50 anos da Bossa Nova, o Jornal O Estado de São Paulo lançou um concurso de contos. Havia uma condição: o conto deveria fazer referência à música considerada a precursora da Bossa Nova: Chega de Saudade, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Meu conto não foi premiado, mas tive o prazer de compor uma história de amor bem ao estilo carioca. Espero que saboreiem. Tenham uma boa semana.
COPACABANA
No calçadão, seus passos cadenciados. À direita, a areia e o mar. Olha os pés em sandálias leves. Gosta do formato dos seus dedos, do contorno de suas unhas. Caminha. Copacabana, de novo. A saia na altura dos joelhos se movimenta a cada passo. Sente no corpo a blusa de renda, jogada nos ombros, marcando levemente os seios. Nas costas, o cabelo perfumado, recém-lavado. Uma mulher passeia. Uma mulher de quarenta e oito anos. Uma bela mulher. Olha o pequeno relógio de pulso. Ainda é cedo. Escolhe um banco, senta-se. Observa os turistas aglomerados diante da estátua do poeta. Para além das bicicletas, um carro estaciona. Música alta. João Gilberto. “Vai minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser...” A mesma música. Há tantos anos... A festa no apartamento de uma amiga, na Barra. Na sala espaçosa, um violão acompanhando uma voz suave. “Diz-lhe numa prece, que ela regresse, porque eu não posso mais sofrer...” Ainda se lembra do vestido indiano que usava, da bolsa a tiracolo. Tantas moças na sala e a voz suave cantou para ela: “A realidade é que sem ela não há paz, não há beleza...” No final da festa, se conheceram, conversaram. Ele a levou para casa no seu fusca azul claro. Trocaram telefones. Próxima dele, observou seus olhos doces contrastando com sua barba máscula. Seu nariz afilado, os lábios vigorosos. Ah, sim, e havia a voz. Tudo que ele falava soava como se cantasse: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca...” Não sabe bem como começou o namoro. Só recorda que durou um ano. O melhor ano, aquele. Ele ia buscá-la no colégio. Os sorvetes da tarde. As festas nos finais de semana ao som de sua voz e violão. Ele cantava para ela. À noite, os passeios na praia. Sandálias na mão, beijos apaixonados ao luar. A primeira vez que era tratada como mulher. A buzina estridente a desperta. Levanta-se, volta a caminhar. Observa o trabalho meticuloso dos escultores da areia. Ouve o choro de uma criança: seu castelo de areia ruiu. Depois de um ano, foi assim que se sentiu, também. Seu pai, professor universitário, deu um basta às perseguições políticas que sofria e resolveu emigrar. Espanha. Ele iria para a Universidade. Ouro Preto. A última noite juntos. “É só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai...” Adeuses chorosos e promessas, muitas promessas. Ele foi ao aeroporto se despedir e, quando o avião decolou, ela sentiu seu coração ficar nas mãos do Cristo Redentor. As cartas trocadas, amorosas, intensas. Poesia e saudade. Aos poucos, cada um se envolveu com sua nova vida. Na última carta, ele falou de suas atividades políticas e do medo que sentia de ser preso. Precisava se esconder, ficaria sem escrever por um tempo. Nessa época, ela conheceu seu futuro marido, na faculdade. Pára num quiosque. Pede uma água de coco. O balconista brinca, ágil no serviço. Todos os erres e esses cariocas. Delícia para os ouvidos. Sorri. O coco nas mãos, um filete de água fresca escorre por seu braço. Devagar, toma a água... e olha o mar. Sabe que nunca fora apaixonada por seu marido. Um bom homem, é verdade, mas... Tiveram duas filhas... e o tempo passou. Um dia, há alguns anos, numa livraria em Paris, ouviu um assobio. A melodia? “Mas, se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda, que coisa louca...” Aproximou-se do homem. Olhou suas costas e desconfiou. O coração veloz, quase doendo no peito. Não é possível. Era. Ele. A barba aparada, não mais revolta, o mesmo perfil. A boca espremida no assobio era a mesma. Os olhos...ela os observou quando ele se voltou, lentamente, e olhou os dela. Doces os olhos, sorridentes os rostos que se reconheceram, maravilhados com a surpresa. Cumprimentos. O convite para um café. Os comentários sobre a coincidência. Daí para a vida de cada um. Ele se casara, também. Uma prima distante. Tinham um filho. O casamento não andava bem. Havia, ainda, a possibilidade de a esposa ter uma grave doença. Novos exames seriam feitos nos próximos dias, assim que retornasse ao Rio de Janeiro. Viajava a trabalho: pesquisa para o doutorado. Confessou que não teria coragem de deixar a esposa se a situação se confirmasse. Recordaram-se do namoro, daquele ano. Anoitecia. Ela disse que precisava ir. O marido e as filhas a esperavam no hotel. Decerto preocupados. Despediram-se, sem trocar telefones nem endereços. Melhor assim. O coco vazio, deposita-o no balcão. O relógio, de novo. Volta a caminhar. Ajeita os cabelos, agora secos. A primavera carioca. Quente. O sol nos seus ombros. Logo estará bronzeada. Há dois anos, a separação, depois das filhas terem crescido. As longas noites solitárias de leituras e filmes. Num site de relacionamento, ousou: digitou o nome dele e notou sua ansiedade enquanto a solicitação era processada. Ele apareceu, com foto e tudo. Nome. Estado civil: viúvo. Enviou recado e mal pôde trabalhar até receber resposta. Passaram aos e-mails, mais íntimos e particulares. Em um ano, se redescobriram. A oportunidade de voltar ao Brasil: oferta de trabalho na empresa de um primo. Chegou ontem, embasbacada com a beleza da cidade que deixara há tantos anos. Estaca e espera o sinal fechar. De longe, avista o bar. Numa das mesas, um homem sozinho. Volta-se para ela, que atravessa a rua em passos lentos. A calçada. Avenida Atlântica. Os sorrisos. Atrás dela, o carro passa, cantando: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim.”
Eliana Maciel
Eliana,
ResponderExcluirUma delícia seu conto! Delicado, envolvente...quando crescer quero escrever assim também...rsrsrsrs.
Beijos.
Gostei do texto.
ResponderExcluirUm verdadeiro passeio pela calçada mais famosa do Rio de Janeiro, com sons, movimentos e imagens perfeitos.
Parabéns!