Queridos leitores
ao publicar meu livro, me pediram uma autobiografia. Não quis fazer. Estava certa de que não conseguiria, em poucas linhas, revelar quem sou. Agora, fiz uma brincadeira comigo mesma: pensei frases para completar "Eu já..." e o texto me agradou. Espero que agrade a vocês também. Na sequência, talvez escreva "Eu nunca...", pensando que as coisas que não fizemos, as oportunidades que não tivemos, as recusas, o não-realizado de alguma forma dizem também quem somos. Fica para a próxima.
Então, segue abaixo o texto. Se quiserem entrar na brincadeira, poderão enviar o "Eu já..." de vocês. Experimentem! Prometo comentar todos.
Abraços!
AUTOBIOGRAFIA
Nasci pelas mãos do Dr. Fernando Miléo, na Santa Casa de Guaratinguetá. A quarta filha do casal. A terceira a sobreviver. Eu tive sarampo, catapora e coqueluche. Eu quase morri de desidratação quando era bebê. Eu já tomei soro na testa. Eu já levei recado para a minha mãe. Eu já fui buscar o meu pai no bar. Eu já assisti tevê na casa da vizinha. Eu já brinquei de roda, de amarelinha, de casinha e de médico. Eu já senti ciúme da minha irmã. Eu já desejei ser bem velhinha. Eu já odiei ter cortado o cabelo. Eu já construí uma casa e depois a deixei para continuar vivendo. Eu já amamentei meus filhos até que dormissem, saciados. Eu já tive um carro velho que sempre precisava de um empurrão. Eu já chorei pelo leite derramado. Eu já me arrependi e voltei atrás. Eu já me arrependi de ter me arrependido. Eu já perdoei setenta vezes sete ao cubo. Eu já segurei um carneiro na unha. Eu já almocei no restaurante da Dona Licéia. Eu já vi o pôr-do-sol no mar de Búzios. Eu já comemorei meu aniversário no Pão-de-Açúcar. Eu já passei noites e noites nos braços serenos de um grande amor. Eu já tive as feridas cicatrizadas. Eu já sangrei tanto que senti a morte ao meu lado. Eu já me decepcionei com muitos advogados. Eu já escrevi cartas de amor sem resposta. Eu já caminhei despreocupada pelo centro do Rio de Janeiro de madrugada. Eu já aprendi a dançar forró. Eu já fui à FLIP por quatro vezes. Eu já cantei num karaokê. Eu já reencontrei um amor antigo pela internet. Eu já jantei num restaurante francês. Eu já vi as luzes de São Paulo de um avião. Eu já comi ostras em Florianópolis. Eu já viajei de moto. Eu já bordei uma toalha de mesa enquanto esperava meu filho nascer. Eu já me apaixonei por um homem mais novo e por outro, mais velho. Eu já desejei viver na Toscana. Na Grécia. Em Itaipava. Em São Paulo. Em Cunha. Eu já quase me afoguei. No mar, na piscina e nas lágrimas. Eu já passei os dedos pelo rosto frio do meu pai. Eu já visitei seu túmulo sozinha, só pra chorar. Eu já ensinei meus filhos a falar, a cantar , a agradecer, a rezar, a respeitar os outros. Eu já fui e voltei de Ouro Preto... dirigindo meu carro. Eu já adentrei 120 metros debaixo da terra. Eu já defendi causas perdidas. Eu já gritei “impeachment” na rua. Eu já chorei ao ver filmes. Duas vezes. Três. Inúmeras. Eu já fui aprovada em sete concursos públicos. Eu já ajudei alguém a se tornar leitor. Eu já devorei livros. Eu já cozinhei no fogão a lenha. Eu já amo meus filhos pelos seres que são. Eu já dormi enroscada sobre um tapete. Eu já comi o pão que o diabo amassou. Eu já desfilei na Embaixada do Morro. Eu já passei a noite de Natal chorando. Eu já ganhei presente no dia dos pais. Eu já me olhei no espelho e me achei bela. Eu já me olhei no espelho e me achei velha. Eu já li Hilda Hilst e gostei. Eu já desisti de ler O Senhor dos Anéis. Eu já li mais de 500 livros. Eu já quis ser marceneira e quase perdi os dedos. Eu já joguei uma aliança no saco de lixo e o amarrei bem forte. Eu já aprendi e ensinei literatura, gramática e redação. Eu já cheirei as roupas dos meus filhos para aplacar a saudade. Eu já fiz bola de chiclete. Eu já fiz as pazes com a minha infância. Eu já conversei com a Marina Colasanti. Eu já perdi a noção do tempo nas ruas de Paraty. Eu já aprendi a tecer com uma amiga chilena. Eu já abracei um urso. Eu já escrevi um livro. Eu já lancei o livro na Bienal de São Paulo. Eu já percebi que tenho muitos amigos. Eu já...