Em um dos contos de “Menina dos Olhos”, intitulado “A Fisgada”, ao contrário dos outros, parece não haver conflito entre a menina e o mundo dos adultos. É a narrativa de um momento único na vida da menina: quando se encanta por um livro, quando é fisgada, qual peixe no anzol, pela leitura. Parece mesmo não haver ali nenhuma trinca no “gelo fino da infância”, como poeticamente descreveu o amigo Walter Addeo. Engano. Em “A Fisgada”, a menina, ao descobrir a leitura, adentra um novo universo... e, embora não aparente haver conflito, a leitura é, essencialmente, causadora de conflitos por abrir portas e janelas a novas maneiras de pensar... e de ser.
Mas, o que quero ressaltar aqui é outra coisa. No conto, a menina, por ser uma das mais altas da classe, ocupa os últimos lugares da fila e, na biblioteca, é a última a se sentar. Também é a última a ser atendida pela professorinha que fazia as vezes de bibliotecária. Após ter distribuído todos os livros, a professorinha tem apenas um livro na mão e o apresenta à menina, dizendo que aquele é o livro mais bonito da biblioteca. A menina o recebe e, a despeito da forte tempestade que escurece a manhã e agita as crianças, envolve-se naquele que seria o primeiro ato de uma grande paixão: a leitura.
Por todos estes anos, pensei que realmente, por algum motivo, eu era especial para aquela professorinha. Ao recordar os detalhes para compor o texto, porém, revelou-se para mim outra verdade: a professorinha, com somente um livro na mão, que sobrara da distribuição aos outros alunos (em tempos em que a produção literária infantil era muitíssimo menor que nos dias de hoje), adotou a estratégia de dizer que era o mais belo da biblioteca. Ao ouvir suas palavras, senti-me tão especial quanto o livro. E abri-me com alegria para recebê-lo e retribuir a gentileza da sábia professora. Ao compor o conto, percebi a habilidade da educadora admirável. Perspicácia... sensibilidade... uma boa dose de improvisação e amor pelo que fazia... assim recebo a sua atitude. E, mãos postas, agradeço ter sido alvo desse saboroso engodo. Fui enganada. Se não o fosse, teria me tornado a leitora que sou?
Para quem não leu... para quem quer recordar, eis o link do conto, publicado no Jornal O Lince: