domingo, 31 de julho de 2011

Saboroso engodo

Em um dos contos de “Menina dos Olhos”, intitulado “A Fisgada”, ao contrário dos outros, parece não haver conflito entre a menina e o mundo dos adultos.  É a narrativa de um momento único na vida da menina: quando se encanta por um livro, quando é fisgada, qual peixe no anzol, pela leitura. Parece mesmo não haver ali nenhuma trinca no “gelo fino da infância”, como poeticamente descreveu o amigo Walter Addeo. Engano. Em “A Fisgada”, a menina, ao descobrir a leitura, adentra um novo universo... e, embora não aparente haver conflito, a leitura é, essencialmente, causadora de conflitos por abrir portas e janelas a novas maneiras de pensar... e de ser.
Mas, o que quero ressaltar aqui é outra coisa. No conto, a menina, por ser uma das mais altas da classe, ocupa os últimos lugares da fila e, na biblioteca, é a última a se sentar. Também é a última a ser atendida pela professorinha que fazia as vezes de bibliotecária. Após ter distribuído todos os livros, a professorinha tem apenas um livro na mão e o apresenta à menina, dizendo que aquele é o livro mais bonito da biblioteca. A menina o recebe e, a despeito da forte tempestade que escurece a manhã e agita as crianças, envolve-se naquele que seria o primeiro ato de uma grande paixão: a leitura.
Por todos estes anos, pensei que realmente, por algum motivo, eu era especial para aquela professorinha. Ao recordar os detalhes para compor o texto, porém, revelou-se para mim outra verdade: a professorinha, com somente um livro na mão, que sobrara da distribuição aos outros alunos (em tempos em que a produção literária infantil era muitíssimo menor que nos dias de hoje), adotou a estratégia de dizer que era o mais belo da biblioteca.  Ao ouvir suas palavras, senti-me tão especial quanto o livro. E abri-me com alegria para recebê-lo e retribuir a gentileza da sábia professora. Ao compor o conto, percebi a  habilidade da educadora admirável. Perspicácia... sensibilidade... uma boa dose de improvisação e amor pelo que fazia... assim recebo a sua atitude. E, mãos postas, agradeço ter sido alvo desse saboroso engodo.  Fui enganada. Se não o fosse, teria me tornado a leitora que sou?
Para quem não leu... para quem quer recordar, eis o link do conto, publicado no Jornal O Lince:


terça-feira, 26 de julho de 2011

Livros de férias...

Passei as duas últimas semanas em férias... e, para relaxar, deixei de lado "As Memórias de Adriano" (sim, já faz tempo que estou lendo - belo e denso livro, para ler devagar) e li dois livros mais leves... Não pelo conteúdo, mas na forma. O primeiro foi o muito comentado "O Livreiro de Cabul", de autoria da jornalista norueguesa Asne Seierstad, publicado em 2006. Ao contrário do que o título sugere, não é uma história romântica. Trata-se de uma narrativa cuidadosa e crua da realidade de uma família do Afeganistão logo após a queda do regime Talibã. A jornalista viveu alguns meses com a família e, por meio deste livro, apresentou ao mundo a condição de vida das pessoas em geral e das mulheres em especial num mundo cujos valores diferem muito dos nossos. Livro envolvente, triste e verdadeiro, linha a linha.   

O segundo livro das férias foi "A História de um Casamento", de Andrew Sean Greer, lançado em 2010. História sobre amores e desencontros entre pessoas que buscam recuperar suas vidas durante e após a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos. Alguns temas - sacrifício, deserção, homossexualismo, experiências com seres humanos - são tratados de forma sincera  e sensível. Outro olhar sobre os anos 50 na América do Norte.   


Foram essas minhas "leves" leituras de férias. E você? O que leu nas férias?

domingo, 17 de julho de 2011

MAR PARA MUITOS PEIXES

No final de semana passado, fui para Ubatuba. A idéia era olhar o mar azul de inverno, caminhar na areia, saborear os frutos próprios do litoral e, no sábado, ir até Paraty para curtir a FLIP.
Para quem conhece pouco, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) acontece há 9 anos e tem como um dos principais objetivos, além, obviamente, de divulgar a produção literária nacional e internacional, promover a interação entre autores e leitores... todos percorrendo as pedras da bela Paraty, abraçados pelos sobrados e acarinhados pelo sol morno de julho. Estive presente nas FLIPs de 2005, 2007, 2008 e 2009 e me encantei com a Festa: efervescência cultural, literária em particular, amálgama de pensamentos dos autores com a simplicidade da cidadezinha beira-mar. De repente, você se dá conta de que a pessoa sentada ao seu lado, naquele restaurante singelo, é um dos seus autores favoritos. Ou um jornalista conhecidíssimo. Conversei com Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna, Arnaldo Jabor, Carlos Heitor Cony... Assisti a palestras e mesas-redondas maravilhosas, com pessoas do porte do Ariano Suassuna. Vi Salman Rushdie, autor de Versos Satânicos, perseguido e jurado de morte por todo o Islã, dançando forró numa tenda próxima à Igreja de Santa Rita. Assim é a FLIP. Assim é?
Pois bem, confesso que fiquei decepcionada com a Festa este ano. Espantei-me ao ver tanta, tanta gente. Não havia possibilidade de tirar uma foto sem que houvesse pessoas à frente, ao lado, atrás... nos pequenos restaurantes, filas à porta. Fila na sorveteria. A livraria abarrotada. Ainda pude ver o jornalista Edney Silvestre, autor de “Se eu fechar os olhos agora...”, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2010. Quase corri para comprar o livro e pedir seu autógrafo... não havia espaço para correr... nem tempo para ficar na enorme fila de autógrafos. Nas primeiras FLIPs, a tenda do telão mostrava as imagens e áudios de todas as palestras. Podíamos ver e ouvir os autores até mesmo sem ingressos, sentados nos degraus ou bancos da praça. Não há mais essa possibilidade. Saí de lá desanimada, antes da principal atração da FLIP 2011: João Ubaldo Ribeiro.
A Festa se popularizou, ganhou adeptos. É muito bom perceber que a FLIP vai ao encontro do novo público leitor brasileiro. Divulgar a leitura de todas as maneiras possíveis é essencial. Por outro lado (ou pelo mesmo), eu estive na FLIP este ano de passagem, sem me ater às programações, e isso pode ter causado o estranhamento. Mas, claro é que a sensível Festa se tornou um megaevento. Tornou-se muito maior que seu cenário: a cidade de Paraty. Pareceu-me um convidado que, um tanto embriagado, faz as honras da casa,  sobe nas cadeiras e discursa em nome do anfitrião.
A pergunta é: mudei eu, ou mudou a FLIP?
Eliana Maciel
P.S.: Boas lembranças da viagem: a paisagem do mirante entre Praia Grande e Toninhas, a deliciosa Pizzaria São Paulo, o relaxante sol de julho, a companhia do amado, nas palavras da música interpretada por Caetano Veloso: “...andar de mão dada na beira da praia por este momento eu sempre esperei...”

domingo, 3 de julho de 2011

O ELEFANTE E A JABUTICABEIRA

A primeira casa em que morei, depois de casada, ficava numa rua estreita e em declive, próxima à igreja de São Benedito. Rua Henrique Dias. Era uma casa pequena, com quatro janelas voltadas para a rua e um portão de ferro. Defronte a esta casa – e a quase todas as casas da rua -, havia um grande muro, estufado pela umidade e pelo tempo. Este muro separava a íngreme calçada do amplo quintal do casarão que ficava diante da Praça São Gonçalo. (Foi nessa Praça que eu, menina, perdi o ônibus e a esperança de levar o almoço para o meu pai.) O casarão, bem deteriorado, guardava, nos fundos, um espaçoso pomar. Não sei se havia outras árvores, só me lembro das jabuticabeiras. Da janela da minha casa – nº 57 – acompanhava durante todo o ano as mudanças nas jabuticabeiras: os galhos quase nus, as folhas, as florezinhas brancas penduradas nos galhos, os tufos macios que explodiam em frutos pretos, luminosos, bem grandes. As muitas jabuticabeiras ofereciam sombra a quem passava pela calçadinha. Quando grávida, senti desejo incontrolável de provar as jabuticabas. E me entregaram bacias e bacias de lustrosos frutos, muito doces e de casca bem fina. Aquelas jabuticabeiras me pareciam eternas.
                        Um dia, não me lembro se era manhã ou tarde, ouvi um grande alarido na rua. Abrindo a janela, notei que um cortejo alegre se aproximava: o desfile de um circo que se instalava na cidade. Peguei meu filho no colo, sentei-o sobre a janela e, segurando firmemente seu tronco, pus-me a olhar e a mostrar para ele as personagens. Na carroceria aberta de um caminhão, homens e mulheres com roupas coloridas rodopiavam, dançavam, exibiam cartolas de lantejoulas e fraques de brocado. Os palhaços acenaram para nós e meu pequeno filho estendeu sua mãozinha para cumprimentá-los. A música circense transformava a rua quase tranquila num picadeiro. Eu e meu menino ficamos ali, absortos. O último carro se aproximou. Era uma carreta que puxava uma enorme jaula. Lá dentro, um elefante, de orelhas baixas e olhos tristes. (Sempre são tristes os olhos enjaulados.) Apontei-o para meu filho, repetindo o nome do animal para que memorizasse. Neste momento, o semáforo lá embaixo passou de verde a vermelho. O cortejo todo parou sob as jabuticabeiras. Em um breve instante, flagrei o inusitado: o elefante deslizou a tromba por entre as barras da jaula e, sem nenhuma cerimônia, enlaçou um dos galhos de uma jabuticabeira desavisada. O sinal abriu, a jaula escorregou pela rua e o galho se soltou da árvore. O elefante, incontinenti, engoliu-o. E pronto! O cortejo seguiu caminho. Poucos segundos depois, a rua era a mesma. Menos por um fato: um elefante vindo sabe-se lá de onde (África? Ásia?) alimentou-se de um galho de uma jabuticabeira brasileirinha do fundo do quintal de um casarão colonial no centro de Guaratinguetá. Nenhum “flash” registrou o momento. Exceto os meus olhos e os do meu filho que, de tão novos, não guardam lembranças.
            Anteontem, passei pela Rua Henrique Dias. Derrubaram o casarão. Derrubaram as jabuticabeiras. Decerto uma enorme máquina as foi deitando ao chão, folhas sob as rodas, raízes expostas. Uma máquina com a mesma falta de cerimônia e sem a mesma inocência do elefante. O operador da máquina decerto nem soube da sombra das jabuticabeiras na calçada e da textura da casca dos seus frutos. Nem sabia do desejo de uma moça grávida ou do abraço de um elefante.
            Vão construir um prédio. “Dois ou três dormitórios”, diz o anúncio. “Varanda ‘gourmet’”. Interessante. Lembra-me Fernando Pessoa:
“Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.”


Eliana Maciel